domingo, 31 de outubro de 2010

Entre arte e filosofia: possíveis abordagens de pesquisa



Uma das propostas da disciplina Seminário de Dissertação I, da linha Educação e Comunicação, que estou ministrando no PPGE/UFSC, é conhecer as diferentes abordagens teórico-metodológicas  da pesquisa  trabalhadas na linha.  No último encontro, o  Prof. Nestor Habkost participou da aula contando um pouco de sua trajetória de pesquisa,. Discutindo a  “questão do método”  a partir das Desregulagens, de Laymert Garcia, falou dos enquadramentos possíveis da pesquisa naquilo que silencia mais do que tem a dizer. Compartilho algumas reflexões que fizemos.

Se todo objeto de pesquisa é por natureza complexo, a questão de como trabalhar a complexidade parece estar mais relacionada ao problema do que ao método, afinal, sem problema não há pensamento, e é construindo bem o problema que o método aparece.  Ao problematizar o próprio ato de pesquisar, o método deixa de ser um a priori e passa ser quase um a posteriori, em que no “vai e vem” com o objeto o pesquisador vai explorando um território a ser descoberto sem eliminar as perspectivas do trajeto, apenas sem definir previamente. No texto “Os intelectuais e o poder”, Foucault enfatiza que a teoria nasce da relação com o objeto, rompendo com o método clássico da Filosofia e de certa forma invertendo o problema ontológico, que não seria mais o quê  e  por quê, e sim como. Esse novo jeito de fazer filosofia  pode dar outro tipo de consistência ao pensamento em relação ao problema  de pesquisa, onde a consistência ao pensado se constrói nos conceitos, por natureza  múltiplos,  e em suas articulações do começo ao fim da pesquisa,  que permitem trabalhar os problemas.

Construir bem um problema e uma trama conceitual sobre ele, trama tecida no exercício do pensar, explicitar, e escrever não exclui o sentir. Mas aí, a questão que se coloca é como lidar com as sensações quando está se pensando. Ou seja, explicitar as percepções pelo pensamento não elimina as sensações que sempre estarão presentes nos deslocamentos do pensar. E esse sentir muitas vezes pode servir de estímulo ao pensamento, ainda mais se considerarmos a conhecida idéia de que o prazer e o desejo movem o conhecimento, tal como Eros, deus do amor se move amorosamente em busca do conhecimento, por amor ao querer conhecer.

E pensando nisso, parece que mais do que estimular, a pesquisa  está intimidando o pensar, sobretudo quando regida por um tempo das instituições que nem sempre coincide com o tempo de aprendizagem dos sujeitos. E então Nestor provoca: o que está existindo  não é amor, é o terror em relação ao pensamento. E pergunta: que anti-pedagogia é essa?

Numa referencia a Deleuze, dizendo que certos textos podem ser lidos como quem escuta uma música, Nestor pergunta que leituras são essas que fazemos sem escutar o texto e sem deixar tocar pela palavra do outro, como algo que nos faz vibrar e dar sentido à leitura?  Se toda palavra tem canto e plumagem, como dizia Guimaraes Rosa, tem algo para ser visto e ouvido, e então há que se perguntar sobre o que fazemos com aquilo que nos toca?

Recuperando a idéia de rizoma e os conceitos de nomadismo, deslocamentos e quebras de hierarquia sobre um território em busca de novos encontros que determinarão o movimetno do pensamento, Nestor enfatiza que  o pensador [e também o pesquisador] se desloca em função daquilo que potencializa a capacidade do pensar. Assim, o pensar depende de encontros,  e não apenas  daquilo que já existia, como diz a filosofia clássica. Em função do encontro,  sou forçado a pensar e me movo em direção das coisas que propiciam esse pensar.

E aqui, as idéias de Spinoza, plenas de força e beleza, trazem o Conatus, o desejo como vontade de  perseverar na existência, manter-se vivo, num processo imanente na própria vida, que não está no fim, mas na finalidade. Nessa perspectiva, determinados encontros podem ampliar e favorecer, ou mesmo diminuir, essa potencia da ação intelectual e como critério para perceber em que medida ela aumenta ou diminui,  Spinoza situa os dois signos: alegria e tristeza, que seriam parte da teoria dos afetos primários. A alegria seria entendida como passagem de uma perfeição menor a uma perfeição maior, sensação de plenitude; e a tristeza seria o contrário, o estado que diminui o poder de atuar.

E diante desse preâmbulo, Nestor contou um pouco sobre os encontros e deslocamentos de suas pesquisas sobre imagem e palavra nos diversos meios de expressão analisando o “artista como criador de si mesmo” (Nietzche) e uma “estética da existência”. Na primeira pesquisa ele compôs a sua poetografia como teoria,  revelando os traços essenciais da obra do artista brasileiro Ismael Nery  que permite dizer a inscrição poética. Analisando a forma como  o sujeito se auto-inventou, ou como o sujeito se transforma no que é pela sua obra, ele foi constriundo os passos para compreender essa teoria num percurso que foi à obra  que explicitava a vida do artista, saiu da obra e foi para o contexto, e então à teoria, para sustentar o movimento de sua percepção. Nesse movimento do “corpo a corpo” na pesquisa, Nestor foi traçando um método que ele chamou de poetografia, fruto da necessidade de criar um conceito para dizer o que queria e precisava dizer, ou seja, ele criou um conceito para explicitar e dar sustentação ao seu problema. Na segunda pesquisa analisou a obra do artista argentino Xul Solar, para compreender a linguagem que ele construiu na sua obra de arte, sempre explicitando como o método foi surgindo no percurso de sua pesquisa.

Enfim, como a pesquisa envolve encontros e um contínuo movimento de construção de um problema  e criação de uma prática cientifica e estética, em que os diferentes deslocamentos  certamente determinarão o movimento do pensamento, estou certa que a participação do Nestor em nossa disciplina não apenas propiciou um lindo encontro mas sobretudo permitiu  aumentar a potência de ação do nosso pensamento, trazendo também muita arte, poesia e alegria. 

Imagem: Drago, de Xul Solar. Fonte http://www.agecom.ufsc.br/index.php?secao=arq&id=9815

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

50 anos do Curso de Pedagogia da UFSC

Fazer 50 anos parece ser muito emblemático, mas ao mesmo tempo, é uma data muito especial, que dificilmente se deixa passar em branco ou sem ao menos fazer um encontro, uma festa, afinal, não é pouca coisa. E se quando alguém faz 50 anos necessariamente pensa na vida que viveu, no que fez e no que ainda pretende viver e fazer diante do tempo que está por vir, diferente parece ser o caso quando uma instituição ou mesmo de um curso faz 50 anos, onde o peso da história não apenas fortalece mas de certa forma projeta uma cultura e tradição.

Assim, por ocasião dos 50 anos do Curso de Pedagogia da UFSC, o PET/Pedagogia organizou um evento para registrar a história do curso e pensar os desafios atuais da formação de professores. Com a participação dos Professores Antonio Cesar Becker, Guiomar Osório de Senna, Maria Ismênia Ribeiro Gonçalves e Leda Scheibe, a mesa redonda percorreu o curso de Pedagogia em 50 anos de UFSC, trouxe histórias e memórias de estudantes, professores e coordenadores que passaram pelo curso e discutiu as perspectivas atuais. Isso tudo permeado com histórias de vida, exemplos e curiosidades de um tempo que não existe mais, e por isso mesmo interpela aos que hoje estão atuando no curso.

Como atual coordenadora, foi interessante saber que o Curso existia antes da UFSC, pois fazia parte da Faculdade Catarinense de Filosofia, posteriormente transformada em Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e incorporada recém criada universidade em 1960.  A partir de 1961, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras foi organizada em seis departamentos: Departamento de Filosofia, de Geografia, de História, de Letras, de Matemática e de Pedagogia, sendo que cada departamento abrigava um curso que aglutinava as cadeiras responsáveis por sua composição curricular. Assim, o Curso de Pedagogia da UFSC foi criado por meio do Decreto 47.672 de 1.10.60 sendo o primeiro curso de pedagogia do estado. (parte dessa história pode ser encontrada na Tese de Doutorado de Letícia Carneiro Aguiar, O curso de Pedagogia em Santa Catarina: a história da sua criação no contexto do projeto desenvolvimentista da década de 1960. Tese de Doutorado. PPGE/UFSC, 2006)

Entre fragmentos da história e o encontro com professores que fizeram parte de minha trajetória, os depoimentos dados me fizeram pensar no quanto foi feito e no quanto ainda temos por fazer para pensar a formação de professores como fato científico, inseparável de suas dimensões éticas e estéticas.

Considerando que a Pedagogia existe no Brasil desde 1939, significando uma conquista e um espaço importante na universidade brasileira  e percorrendo um caminho para constituir-se como ciência mais que uma profissão, a história desse percurso revela momentos muito esclarecedores da atual condição. Formando diferentes perfis profissionais - do professor normalista ao professor de Educação Infantil e Anos Iniciais, dos generalistas aos especialistas e gestores da educação – e atravessando diferentes propostas curriculares - dos currículos mínimos às atuais diretrizes curriculares -, percebemos que o embate entre a Pedagogia como campo do conhecimento e teoria da educação, e Pedagogia como curso e profissionalização está presente até hoje. No entanto, se a discussão sobre Pedagogia ser ciência ou ser uma prática hoje está quase fora de questão, não podemos negar o reconhecimento de que há um conhecimento pedagógico científico porque há um método e se pode  estudar cientificamente o fato pedagógico, como bem lembrou Leda Scheibe.

E diante dos fatos pedagógicos presentes entre as reformas curriculares e o processo de implantação/avaliação de novos currículos de Pedagogia que acompanhamos neste momento  em que vivemos a “universidade operacional”, fica a certeza da necessidade de redefinir o que entendemos por formação.

Ao discutir o conceito de formação na conferência de abertura da 26ª Reunião Anual da ANPED, A universidade pública sob nova perspectiva, a filósofa Marilena Chauí  instiga  o nosso pensar. Como a própria palavra sugere uma relação com o tempo, formação poderia ser o processo de introduzir alguém ao passado de sua cultura, no sentido antropológico do termo, como ordem simbólica ou de relação com o que já não existe mais na perspectiva de entender o momento atual e nele atuar. Ou seja, seria um despertar de questões que o passado configura no presente pensando no vir a ser, como a analogia com a obra de arte que Chauí faz a partir de Merleau Ponty: “a obra de arte recolhe o passado imemorial contido na percepção, interroga a percepção presente e busca, com o símbolo, ultrapassar a situação dada, oferecendo-lhe um sentido novo que não poderia vir à existência sem a obra”. De forma análoga, a autora enfatiza que a obra do pensamento só pode ser fecunda quando pensa e diz o que de outra forma não poderia ser pensado e dito, e quando pelo próprio excesso nos dá a pensar e a dizer criando possibilidades de superação a posteriori. Assim, podemos dizer que “há formação quando há obra de pensamento e que há obra de pensamento quando o presente é apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado como questão, pergunta, problema, dificuldade”.

Certamente poderíamos ampliar tal conceito no sentido de pensar nas diversas formas de conceituar as experiências hoje, propiciadas pelas tecnologias e seus diferentes modos de relação, produção e expressão ética-estética que possibilitam e que também nos formam.

E diante desse e outros possíveis entendimentos sobre a formação, uma pergunta: o quê e como o Curso de Pedagogia da UFSC está formando, de fato, nesses 50 anos? 

Foto: Livro 1, Atas da Congregação, p.157

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Educação, pesquisa e música na formação de professores


“Educação no Brasil: o balanço de uma década”. Este foi o tema da 33ª Reunião Anual da ANPED, nos dias 17 a 20/10/2010, em Caxambu. Entre GT, Reuniões e Sessões Especiais, apresentei a pesquisa “Os usos dos meios, os consumos culturais e a formação de professores para a mídia-educação”, desenvolvida em parceria com Prof. Pier Cesare Rivoltella, CREMIT, da Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão. Esta pesquisa, que também foi apresentada no III Seminário de Pesquisa em Mídia-Educação, na UFSC em setembro de 2010, pretendeu fazer um mapeamento dos consumos culturais dos professores de algumas escolas de Florianópolis e Milão e investigar os usos das mídias e tecnologias no âmbito pessoal e profissional, identificando boas práticas e dificuldades a fim de pensar em pistas para a formação de professores.

De um modo geral, é possível dizer que as representações dos professores a respeito das TIC aparecem como saber, comunicação e velocidade, e que há certa horizontalidade entre os usos das mídias nos contextos pesquisados, revelando certa distância entre o alto uso das tecnologias no plano individual e o pouco uso no âmbito profissional.

Entre tantas questões, aproximações e distanciamentos sobre as práticas pedagógicas nos diferentes contextos socioculturais culturais, um dado que chama a atenção do contexto local, mas que também podemos pensar em termos de Brasil, é a respeito da música e de sua presença na vida das pessoas em geral, e de professores em particular. Os dados da pesquisa indicam que no tempo livre e nos consumos culturais dos professores que participaram da pesquisa em Florianópolis, cerca de 70% preferem realizar alguma atividade relacionada com a música, enquanto 45% dos professores italianos que participaram da pesquisa se referem à música como atividade preferida.

Por coincidência, no mesmo dia da apresentação do trabalho, 20/10/10, o Jornal FSP publicou matéria a respeito de uma pesquisa feita em São Paulo a respeito do que mais representa a cultura brasileira, e a música aparece com 13%, seguido pelo carnaval (12%), e futebol (10%). Além disso, entre os hábitos culturais dos paulistas e as atividades que costumam realizar, ouvir música aparece como a atividade mais citada. Que a música brasileira é altamente reconhecida por sua beleza e diversidade é algo escrito e cantado aos quatro cantos, mas como representação de identidades e da cultura brasileira, sua aproximação com preferências em contextos tão singulares não deixa de ser instigante, ainda mais se considerarmos as especificidades das pesquisas acima.

Assim, embalada por esses dados, na volta da Anped participei de uma Oficina sobre Música e Mídia, na 9ª SEPEX (Semana de Pesquisa e Extensão) na UFSC, discutindo a importância da música na formação de crianças, jovens e professores. Esta atividade desenvolvida com professores e estudantes de licenciaturas cantando e dançando em sala de aula não só evidenciou as inúmeras possibilidades de pensar os repertórios e a formação cultural, como trouxe imagens de música e dança para além dos GT da Anped, em que estudantes, professores e pesquisadores durante do dia, dançavam livres, leves e soltos nas noites de Caxambu...


Foto: caxambu7_coisinhas-ana-blogspot