sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Viagens e fronteiras, realidades e ficções.

Entre algumas reflexões sobre diversos eventos brevemente compartilhados neste espaço, dois momentos particularmente especiais que ainda ressoam em  desconcertantes tentativas  de significar presente e passado merecem um pequeno registro.

A leitura de um fragmento de um livro, que misteriosamente foi parar em minhas mãos enquanto estava na livraria de uma estação a espera de um trem durante uma viagem de estudo (compartilhada no post de setembro). O fragmento dizia algo mais ou menos assim, em livre tradução :

“A viagem – no mundo e sobre o papel -  é por si um contínuo preâmbulo, um prelúdio de algo que  sempre ainda está por  vir e sempre ainda está atrás da esquina; partir, parar, voltar atrás , fazer e desfazer malas, anotar  a paisagem que, enquanto se atravessa, foge, se desfaz e se recompõe como uma sequencia cinematográfica, com as suas dissolvências e reorganizações, ou como um vulto que muda no tempo (...)
Viajar ensina a desorientação, a sentir-se sempre estrangeiro na vida, mesmo na própria casa, mas ser estrangeiro entre estrangeiros é talvez o único modo de ser verdadeiramente irmãos(...)
 Existem lugares que fascinam porque parecem radicalmente diferentes e outros que encantam porque, já na primeira vez, resultam familiares, quase um lugar natal. Conhecer é muitas vezes, platonicamente, reconhecer, é o emergir de algo talvez ignorado até aquele momento mas acolhido como próprio. Para ver um lugar, ocorre revê-lo. O conhecido e o familiar, continuamente redescoberto e enriquecido, são a premissa do encontro, da sedução e da aventura; a vigésima ou a centésima vez em que se fala com um amigo ou se faz amor com uma pessoa amada são infinitamente mais intensas que a primeira. Isso vale também para os lugares; a viagem mais fascinante é um retorno, como a odisseia, e os lugares de percurso usual, os microcosmos cotidianos atravessados por tantos anos, são um desafio ulissíaco. “Porque passeia por estas terras?”pergunta na famosa balada de Rilke, o porta-estandarte  ao Marquês que está ao seu lado. “Para retornar”, responde o outro”.  (L’infinito viaggiare, de Claudio Magris).

Desnecessário explicar os tantos sentidos das diversas viagens e travessias que fazemos, mas essa metáfora me parece extremamente poderosa para expressar tudo que aprendi e aprendo cada vez que viajo, retorno ou chego a algum lugar...

E já que não existe viagens sem que atravessemos fronteiras, sejam elas geográficas, sociais, lingüísticas, culturais, psicológicas e tantas outras que poderíamos listar,  por que não dizer das fronteiras do pensamento? Ou mais precisamente, dos apontamentos sobre Realidade e Ficção, anotados a partir da fala do psicanalista e escritor Contardo Calligaris, nas Fronteiras do Pensamento, na ilha de SC, outubro de 2013.

Com seu estilo que lhe é tão próprio, parece saber que qualquer palavra, gesto ou olhar pode traduzir pequenos/grandes deslizes ou revelações que por vezes podem ser excessivos, mas sempre coloridos com as tintas das narrativas que vivemos, contamos e inventamos para nós mesmos e para os outros. 

Entre lembranças, devaneios e afirmações, suas palavras me tocaram e ainda tocam de várias maneiras. Poeticamente, quando tangenciam afetos e sentimentos com os quais me identifico, e de forma prosaica quando percebo as neuroses e psicoses que também fazem parte do cotidiano de todos nós. Nesse contraste, o lugar da ficção pode ser definidor, pois para ele, a ficção também pode ser uma unidade de medida: “Entre realidade e ficção, o valor épico de uma vida que vale a pena ser contada...” 

Para ele, talvez as ficções possam ser algo parecido com o delírio, inclusive na função de orientar no mundo. Nesse caso, o cinema e a literatura podem ter um papel muito especial, pois assistir ou ler a vida de certos personagens ou apenas de alguém que é outra pessoa pode ser não apenas uma forma de revelação para os outros, mas sobretudo para nós mesmos. E destaca: "Indico obras de ficção ou filmes porque acho que ali as pessoas vão encontrar maneiras para se situar no mundo".  

Mas o desejo de viver de tal maneira que nossa vida valesse a pena ser contada, recontada ou até mesmo inventada... pode nos levar às escolhas inusitadas diante do imponderável da vida. E aqui, trago novamente as palavras Calligaris, agora escritas por ele (o som, a fúria e as cartas ) referindo-se a diversas histórias de possíveis encontros e desencontros que foram e ou poderiam ter sido, dizendo: “Penso nos convites que recuso, nos livros de estreantes que deixo de ler, nas amizades que não vingam".

E entre Magris, Calligaris e muitos outros que me inspiram e compartilham histórias, para além de livros, convites, viagens, estudos, encontros construídos, recusados ou não acontecidos em 2013, o desejo de que boas surpresas e bons (re)encontros possam continuar a ser vividos, contados e/ou inventados em 2014...

domingo, 8 de dezembro de 2013

UCA na Bahia e em Santa Catarina

    


O que o Programa Um Computador por Aluno promoveu de mudanças na escola na prática pedagógica? Após dois anos de trabalho a respeito do PROUCA na Bahia e em SC, os resultados da pesquisa desenvolvida em parceria interinstitucional entre UFSC, UDESC e UFBA foram apresentados no II Seminário UCABASC, (Des)caminhos de uma Política Pública?, evento que aconteceu na UFBA, Salvador, nos dias 3 e 4/12/2103. O evento contou com a participação dos coordenadores da pesquisa, Elisa M. Quartiero/UDESC, Maria Helena Bonilla e Nelson Pretto/UFBA, Monica Fantin/UFSC, de interlocutores como  Tania Hetkowski/UNEB, Adriana Bruno/UFJF, Tel Amiel/UNICAMP, Lindomar Boneti/UFPR, e Paulo Cysneiro/UFPE, além do consultor internacional da pesquisa, Pier Cesare Rivoltella, da Università Cattolica di Milano, e de professores e diretores das escolas participantes da pesquisa.

Durante o evento, foram discutidos os diversos olhares sobre o Programa, com análises sobre a gestão macro e micro(como o programa foi criado e implantado entre as instâncias do governo federal, estadual e municipal até chegar às escolas), sobre a prática pedagógica (olhares de professores e alunos sobre o latpop na sala de aula) e sobre a possibilidade das redes de trabalho colaborativo. Além de observação participante para acompanhar o cotidiano escolar, durante a pesquisa foram desenvolvidas algumas intervenções didáticas em determinadas escolas envolvidas no programa, tanto com formação de professores quanto com propostas pedagógicas em sala de aula. Também foram realizados questionários, entrevistas e grupos focais envolvendo gestores, professores e alunos.

O evento também inaugura uma proposta de apresentação de resultados da pesquisa pouco comum na área da educação em nosso país ao discutir as análises com colegas professores e pesquisadores convidados a fazer comentários e também com professores que participaram da pesquisa nas escolas. A diversidade de práticas encontradas revela singularidades e também certas regularidades presente nos diferentes cenários investigados, diluindo certas fronteiras por um lado e destacando as diferenças sócio-econômicas e culturais  por outro.

Entre algumas constatações, evidenciamos problemas infraestruturais com os equipamentos/laptop (pouca memória, tela pequena), falta de manutenção e reposição de laptop, precária banda larga nas escolas. Nos depoimentos dos professores, destacamos a dificuldade inicial com a máquina, o modelo de formação adotado no programa e os desafios da inserção da tecnologia na sala de aula para que realmente se configure em mudança e inovação na perspectiva de uma inclusão digital que seja também social e cultural. A maioria dos usos do laptop em sala de aula se refere à pesquisa e produção textual em múltiplas linguagens (escrita, imagética, audiovisual), blogs e outras atividades. Para alguns professores, a prática pedagógica continua a mesma que antes se fazia com computadores na sala informatizada, para outros, houve uma mudança na metodologia de trabalho e para outros ainda, faz pensar diferente.

Para a maioria dos alunos que participaram da pesquisa, a escola com o UCA ficou mais divertida e a preferência de usos do laptop se evidencia nas motivações que a tecnologia promove nos jogos e nas interações em redes sociais. Além da dimensão de acesso e inclusão pela posse do laptop para levar para casa, verificamos que em contextos de exclusão e privação econômica, o “uquinha” - como é chamado por alguns - pode fazer a diferença no sentido de pertencimento. Em outras situações, a exigência é por uma máquina “de verdade” e “moderna” com acesso à rede e com velocidade. Entre algumas sugestões dadas, a dica para que o programa se amplie para outras escolas e que os professores utilizem mais o laptop em suas aulas.

Algumas tensões nas falas de professores e alunos evidenciam certas dificuldades diante dos limites da máquina, e certos dilemas sobre os usos do laptop e das redes sociais em sala de aula com o argumento da perda de foco, da falta de atenção dos alunos e do uso ou não de filtros ou bloqueios.  Também destacamos o desafio da articulação entre os saberes e as práticas culturais dentro e fora da escola com o uso do laptop no contexto da cultura digital.

Entre tantas questões a serem aprofundadas, observamos que tais considerações não são exclusivas desta realidade investigada e referendam resultados encontrados em outras pesquisas desenvolvidas no país e no exterior, o que nos leva a problematizar as políticas públicas que seguem o mesmo formato há anos e anos ... e o que é ainda mais preocupante, sem considerar os resultados das pesquisas feitas. Nesse sentido, visando contribuir com tal discussão, o II Seminário produziu a Carta de Salvador para a sociedade brasileira e para o Ministério da Educação.

E para tentar responder a pergunta do início do post, uma pérola que sintetiza diversas análises na singela fala de um menino que quando perguntado sobre o que havia mudado na escola com o UCA, respondeu algo mais ou menos assim: “continua igual, só está mais tecnológica”. 
Sem comentários!!!

Mas como nem só de análises e discussões formais se constrói um evento científico, não poderia deixar de registrar a importância dos momentos informais e dos encontros que fortalecem os vínculos e outros olhares para a diversidade de questões em pauta. Entre as luzes, as cores e as boas energias da baía de todos os santos e dos orixás, os encontros em confrarias, acquas, pós-tudos e paraísos tropicais com seus inusitados sabores e sotaques que certamente permanecem na “memória coletiva” do evento e que anunciam outras continuidades possíveis... 

Por fim, minha gratidão pelos belos momentos vividos junto a este e outros grupos que fizeram parte dessa história.