sábado, 27 de novembro de 2010

O método como desvio e a pesquisa com/sobre criança e mídia

 
A verdade sai da boca das crianças. Muito próximas ainda da natureza, são primas do vento e do mar; seus balbucios oferecem a quem sabe ouvi-los, largos e vagos ensinamentos
J. P. Sartre – As palavras

Criança é enigma, ultrapassa as fronteiras de nosso entendimento quando usamos apenas a razão, escapa ao nosso poder e daquilo que muitas vezes temos a oferecer a ela, nos surpreende com perguntas, olhares, gestos e inversões que parecem brilhar fora desse nosso limite e para alguns, nunca será possível capturá-la com nossos saberes e práticas. Enfim, criança nos desafia e a pesquisa com criança mais ainda.

Então como é possível nos aproximar desse universo da criança? Que encontros são possíveis para decifrar esse enigma que tantas vezes se constitui em sujeitos de nossas pesquisas no campo da mídia-educação?

Talvez uma primeira possibilidade seja a de nos aproximar das crianças, procurar saber o que elas pensam, sentem e dizem sobre sua experiência com a cultura – desde jogos e brincadeiras até artefatos da cultura, da mídia e da tecnologia. Captar os olhares das crianças sobre as interações que estabelecem com tais produções e com o outro, os contextos e significados que essa experiência pode ter é uma das condições para pensar em mediações possíveis que cruzam os territórios da educação formal e informal.

Ao concordar com Sartre nas palavras da epígrafe acima, não podemos esquecer que a especificidade das vozes e dos olhares das crianças também estão atravessados pelas mediações do mundo adulto em suas diversas expressões através da cultura. E nas falas das crianças é possível perceber desde obviedades até estranhamentos e sofisticadas impressões que desafiam nossa capacidade de interpretar os possíveis significados que se movimentam nos sinuosos caminhos da mediação adulta.

No entanto, para captar a especificidade das interações das crianças, seus olhares, falas, silêncios e gestos, que muito nos dizem sobre a experiência da significação a partir da cultura lúdica, mídia e tecnologia, não basta nos aproximarmos delas para saber o que elas dizem. É preciso estarmos alicerçados em instrumentos teórico-metodológicos que ajudem a investigar tais sentidos, e foi na compreensão de Benjamin sobre o “método como desvio” que buscamos inspiração para entender a relação das crianças com as mídias em uma pesquisa sobre criança, cinema e mídia-educação.

Entender o método como desvio significa a renúncia à discursividade linear da intenção particular em proveito de um pensamento minucioso e hesitante, que sempre volta ao seu objeto por diversos caminhos e desvios.

Caminhos que incluem diferentes formas de aproximação com o objeto, o uso de diversas técnicas de pesquisa e suas problematizações para não cair nas “armadilhas” que os sujeitos de pesquisa nos preparam, a relação entre criança e pesquisador, o diálogo como princípio educativo, a produção de mídia com crianças, a dimensão de autoria e tantas outras questões que asseguram outras formas de participação das crianças na pesquisa e na cultura.

 Assim, discutindo como algumas pesquisas com criança e mídia, através da experimentação didática, da intervenção educativa e da pesquisa-ação podem se constituir em experiências de mídia-educação, encerramos as abordagens teórico-metodológicas no Seminário de Dissertação ECO I. 

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A pesquisa na perspectiva pós-estruturalista

Ao continuar a discussão a respeito das diferentes ênfases teórico-metodológicas e abordagens da pesquisa em educação e comunicação na disciplina Seminário de Dissertação I, PPGE/UFSC, essa semana tivemos a presença do Prof. Wladimir Garcia falando sobre as possibilidades da pesquisa na perspectiva pós-estruturalista.

Considerando que não há uma epistemologia nas Ciências Humanas, há que se fazer um esforço para pensar as possibilidades de sistematização. Se o conhecimento nas artes é sistematizável, "arte é sensação", "cultura é paisagem", há que buscar imagens móveis e flexíveis para essas novas matérias. Assim, o professor falou de sua experiência com a pesquisa e da possibilidade do ensaio, entendendo a dissertação/tese como um trabalho de passagem, como uma verdade provisória e um “pensamento fraco”, como diz Gianni Vattimo. Para Wladimir, o ensaio seria como um working progress, uma análise e um trabalho que de certa forma nunca acaba, e numa analogia com os conceitos de luto e perda na psicanálise, seria como parar de chorar mas sabendo que a dor permanece.

Ao falar dos três ensaios sobre o tempo, o espaço e a linguagem, como linha de fuga e espaço de criação no seu trabalho "O cometa e o bailarino: a modernidade em Murilo Mendes", ele revelou sua poética sincrônica. Ou seja, o cruzamento entre os eixos diacrônico (relação do autor com sua história e seu devir) e sincrônico, a dança que se realiza no corte do tempo presente e que se mantém (a partir das relações com autores, parceiros, grupos de pessoas) com comunidades desejantes que alimentam e motivam o nosso pensar.

Wladimir enfatizou que na construção da pesquisa, a idéia do desenho é fundamental. Um desenho que estrutura o pensamento e a partir dessa estrutura se percebe as tensões internas, os conflitos produtivos (que é a grande lição da pós-modernidade). Nem sempre é necessário (e possível) eliminar as tensões, e às vezes elas se transformam em paradoxo, "melhor ainda quando nesse percurso encontra uma aporia", diz ele.

Se hoje escrever uma tese por ensaio, com partes independentes que se relacionam, pode ser considerado algo comum, foi uma conquista fruto de um trabalho de pequenas rupturas. E hoje, a ruptura parece ser outra, como a idéia do limiar, de um portal de entrada. Esse limiar ou portal de onde se vislumbra coisas novas também é anacrônico, e o antigo vira novo. E então Wladimir recupera a idéia de “índice como hipótese”, trabalhado por Umberto Eco, para compor os traços do desenho a ser construído na tese.

Ou seja, o índice como hipótese de trabalho, como estrutura relacional, parte e expressão do trajeto inicial, um plano de trabalho em movimentos. Nesses movimentos, os conceitos são cintilações, micro-explosões, epifanias, achados e quando o pesquisador percebe que o conceito pulsa e o atinge, como o punctum de Barthes, ele constrói a escrita.

Nesse desenho da pesquisa, o mapa conceitual pode ser uma forma de articular os diferentes conceitos e os campos conectores que se relacionam entre si e com grandes eixos ou traços. O arcabouço conceitual é a caixa de ferramenta para o pesquisador abrir e usar quando precisa. A partir desse desenho, o trabalho vai se construindo e reconstruindo e pode ser visto como criação, que exige rigor e domínio conceitual. Criação que se origina na “situação problema”  e na pergunta “Isso faz questão para mim?”

E para mostrar como essas questões se transformaram em teses e dissertações, Wladimir colocou na roda alguns trabalhos que escapam do formato convencional, trabalhos com técnicas vigorosas e inovadoras, exercícios de bricolagem, trabalhos espacializados, diálogos entre imagens e texto para além da ilustração e das relações hierárquicas da produção textual, performances, mistura de gêneros, estruturas convexas, “comédia intelectual”. Enfim, outros formatos para dar corpo para o objeto, “uma forma que pensa” e para isso, a busca da intencionalidade da forma. Nesse trabalho como ruptura, a crítica pode ser criação e a liberdade não é dissociada do rigor nem da forma.

Nessa perspectiva, o pós-moderno não vem superar o moderno, mas pode ser entendido como um estado agônico que vem problematiza o que se instala nas próprias fendas e rachaduras do existente como um devir.  No entanto, esse tipo de trabalho acadêmico e de leitura não é simples, exige abertura, ousadia e um outro nível de elaboração. Há que saber ler.

E como indicação de leituras, O rumor da língua, de R. Barthes, sobretudo os textos “Jovens pesquisadores” e “Concedamos a liberdade de traçar” , e o texto de sua autoria, Pós-modernidade e diferença, onde se encontram alguns elementos teóricos do pensamento pós-estruturalista que influenciam a pesquisa. Elementos que não existem de forma orgânica e sim criativa, como destaca Wladimir, para serem inspiradores da produção da diferença, que pode ser feita em qualquer direção.

domingo, 7 de novembro de 2010

Monteiro Lobato entre a literatura infantil e o considerado "politicamente correto"


Tenho acompanhado a polêmica sobre o Parecer do CNE que sinaliza a possível exclusão de Monteiro Lobato das listas de literatura infantil dos livros nas escolas brasileiras por seu "conteúdo racista". Em jornais, listas, redes sociais, escolas e conversas de corredor diferentes pessoas  que atuam ou não no campo da educação, literatura, formação de professores e infância têm se manifestado de diferentes formas.

A princípio a notícia causou-me espanto e aos poucos foi se transformando em indignação: como pode termos representantes de um Conselho Nacional de Educação com um raciocínio tão estreito sobre uma obra que pode ser considerada um clássico da literatura infantil? Evidentemente toda obra de arte e, nesse caso, todo livro deve ser analisado no contexto histórico de sua produção e recepção (e se quisermos ir além, no contexto de mediação em que a obra circula e produz os mais diferentes significados a partir das interações que propicia). Assim, me pergunto o que pode significar proibir a circulação de determinados clássicos da literatura nas escolas por seu pretenso “conteúdo racista”? Que concepção de leitura, intertextualidade, dialogia, polifonia, e sobretudo, de agência do sujeito estaria por trás dessa representação? 
      
Como contribuição ao debate, o texto de Marisa Lajolo, uma das maiores especialistas em Monteiro Lobato,  Quem paga a música escolhe a dança? explica do que trata Caçadas de Pedrinho. Ela opina sobre o imenso equívoco que a seu ver “incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.  O que a nota exigida  deve explicar? O que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa ? Qual seria o conteúdo da nota solicitada? A nota deve fazer uma auto-crítica (autoral, editorial?), assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que “Caçadas de Pedrinho” é  um livro racista?  Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?” 

Além desse argumento, tem também a carta da escritora Ana Maria Machado posicionando-se contra qualquer forma de veto ou censura à criação artística, pois em vez de proibir  "seria melhor que os responsáveis pela educação estimulassem uma leitura crítica por parte dos alunos. Mostrassem como nascem e se constroem preconceitos, se acharem que é o caso. Sugerissem que se pesquise a herança dessas atitudes na sociedade contemporânea, se quiserem. Propusessem que se analise a legislação que busca coibir tais práticas.  Ou o que mais a criatividade pedagógica indicar. Mas para tal, é necessário que os professores e os formuladores de políticas educacionais tenham lido a obra infantil de Lobato e estejam familiarizados com ela. Então saberiam que esses livros são motivo de orgulho para uma cultura. E que muito poucos personagens de livros infantis pelo mundo afora são dotados da irreverência de Emília ou de sua independência de pensamento. Raros autores estimulam tanto os leitores a pensar por conta própria quanto Lobato, inclusive para discordar dele. Dispensá-lo sumariamente é um desperdício". Enfim, teriam muitos outros artigos, como Monteiro Lobato no tribunal literário, de Aldo Rabelo, e diversas outras manifestações nesse sentido, como a da Academia Brasileira de Letras e da OAB, além de um abaixo assinado contra tal parecer circulando pelas listas e redes.

Afinal, seguindo a lógica da proibição, podemos perguntar se seria apenas uma questão de tempo para que outros “clássicos da literatura universal” sejam igualmente excluídos das listas de livros das escolas por seus conteúdos considerados “politicamente incorretos”? Será que a proibição é a forma mais educativa de trabalhar com diferentes facetas da produção cultural? 

Imagem: Reprodução de foto de Monteiro Lobato
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/livrariadafolha/ult10082u647895.shtml

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Estudos culturais e a pesquisa em educação

Na seqüência da participação especial no Seminário de Dissertação Educação e Comunicação I, que ministro no PPGE/UFSC, no encontro dessa semana, nosso convidado foi o Prof. Leandro B. Guimaraes que contou um pouco sobre sua trajetória de pesquisador e suas aproximações com os Estudos Culturais e a pesquisa em educação. 

A história da linha pesquisa dos Estudos Culturais Educação, na UFRGS, foi se construindo desde 1996 na área de Currículo, e não é a toa que até hoje os estudos do currículo em nosso país tem forte ênfase pós-estruturalista, com se pode ver nas produções do GT da Anped. Considerando que essa perspectiva hoje não seja hegemônica, é a noção de pedagogia cultural que passa a ser a unificadora das diferentes perspectivas. Considerando também que as verdades se reinventam, hoje a própria noção de pedagogia cultural está sendo revisitada, ou colocada sob rasura, como diz Leandro. Para ele, tal noção está diminuindo suas potencialidades para as investigações que vem operando, como sugere no texto Das pedagogias culturais aos dispositivos artísticos: (de) compondo educações ambientais. E então, junto a outras noções do contemporâneo que vão se configurando na sua pesquisa, ganha força a noção de dispositivo e de delicadeza.

No campo da pesquisa em educação nessa perspectiva, os conceitos de cultura, representação, identidade, consumo cultural, e resistência são fundamentais para entender o circuito da cultura (Stuart Hall, Johnson), os modos de produção e recepção dos artefatos culturais e  suas práticas de significação. No entanto, se a maioria das pesquisas nesse campo, fortemente amparado na matriz britânica dos estudos culturais, enfatiza o deslocamento do sujeito como enunciador, passando a pesquisar sobretudo os artefatos em si, o que representam em sua dimensão pedagógica (daí a importancia da pedagogia cultural), a vertente latino-americana começa a ganhar força como referencial das pesquisas na linha e recoloca o sujeito e a questão da produção dos artefatos em cena. Assim, os conceitos como hibridação, articulação e mediação vão complexificando as questões que vão sendo operadas no campo da pesquisa. 

Se nas pesquisas iniciais o político era mostrar como as produções eram feitas com a intenção de desnaturalizar o óbvio, novas questões vão sendo colocadas em cheque.

Afinal, o que quer a pesquisa? E o que a pesquisa passa a querer quando você é capturado por ela?, pergunta Leandro. E antes de responder sobre o papel da nossa agência, ou seja, sobre a possibilidade de agência da investigação, do pesquisador e do próprio campo político, o documentário Acontecências, de Alice Villela e Hidalgo Romero, instiga o nosso pensar.


A partir da narrativa fílmica, uma pesquisadora mostra e narra seu percurso investigativo em uma aldeia indígena e seu processo de transformação de si. Mostra como as perguntas e questões iniciais da pesquisa vão se transformando e construindo novos significados, sobretudo a partir da narrativa das imagens. E aqui, uma questão para o pesquisador pensar sobre a  diferença sutil entre se colocar no texto e viver a experiência da transformação de si. Experiência que não necessariamente garante a transformação do outro, experiência molecular, mas que pode ser geradora de micropolíticas que acontecem em âmbitos menores.

Certamente isso nos leva a pensar nas múltiplas significações que estão em jogo quando se faz pesquisa. Se entendermos a pesquisa como um ato criativo que potencializa espaços de criação, agência e expansão do pensamento e que pode disseminar a criação de alguma coisa, poderíamos acrescentar a dimensão da criação naquele circuito da cultura.